26 de novembro de 2018

Débora Fogliatto, do SUL21
Mesmo diante da conjuntura política atual, em que é possível prever retrocessos e dificuldades para os próximos anos, o presidente do Sindicato Nacional dos Docentes de Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) trouxe a Porto Alegre a perspectiva de que as universidades serão palco de muita resistência e até avanços. Professor de medicina na Universidade Federal do Maranhão, Antônio Gonçalves Filho esteve na capital gaúcha para participar de seminário comemorativo dos 40 anos da seção sindical do Andes na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Na avaliação de Antônio, há diversas ameaças ao serviço público, aos trabalhadores e à educação que podem se concretizar no país. “A expectativa é de que os ataques se intensifiquem, tanto na frequência quanto na profundidade. O governo eleito não esconde que os serviços públicos e os servidores são o alvo a ser atacado”, avalia ele, que é urologista e cirurgião.
Graduado em Medicina pela Universidade do Maranhão, onde atualmente leciona, Antônio coordenou dentro da instituição a implantação do programa Pro-Saúde, que propunha uma mudança curricular dos cursos de Medicina. “Se tivéssemos avançado mais, talvez pudesse ter se aproximado do processo de formação de Cuba, que conseguiu desmistificar a formação médica, que no Brasil ainda é muito elitista”, avalia ele sobre o programa, que não chegou a ser implantado de forma generalizada no país.
Em entrevista ao Sul21 antes do evento, o professor e líder sindical falou dos ataques a universidades que ocorreram durante o período eleitoral, de projetos como o Escola Sem Partido, da formação dos médicos brasileiros e das propostas de privatização da educação, a qual considera uma política segregacionista. “Tem um valor simbólico de dizer que esse espaço é privado, e o Estado só vai garantir o ensino básico e o técnico voltado para o mundo do trabalho, então vai elitizar novamente a universidade”, destaca.

Confira a entrevista completa:
Sul21 – Para começar, o senhor pode me contar um pouco de sua trajetória, tanto como professor quanto dentro do sindicato?
Antônio – Militei no movimento estudantil nos dois primeiros anos da faculdade. Na minha época a partir do terceiro ano a gente já ia para o hospital, então não tinha como se envolver. Depois que me formei, fiz residência em cirurgia e urologia e me tornei professor. Aí voltei a militar como professor. Digo que eu sou uma exceção, porque venho de um departamento de cirurgia, que tem poucos militantes de movimento docente. Mas eu acho que é uma necessidade hoje o professor se envolver com o movimento docente, contribuir nesse processo, já estou na militância docente há 20 anos, contribuí com minha seção sindical e agora estou na presidência do sindicato nacional. Mas está cada vez mais difícil conseguir novos militantes para o movimento docente, e isso é um fenômeno mundial. Nunca tivemos um período com tão poucas pessoas sindicalizadas.
Mas o Andes-SN é um campo de muita resistência, temos alguns princípios que nos ajudaram a sobreviver às adversidades. E ele busca contribuir com diversas políticas sociais, discutimos questão indígena, ambiental, tudo isso tem a ver com o nosso trabalho e a concepção de educação que defendemos. Eu me insiro nesse processo como mais uma peça dessa engrenagem, que eu acho que precisa de mais gente. Dentro da independência que precisa ter, mas que na hora de agir a gente consiga juntar forças. Nossas ações estão muito fragmentadas ainda, e dentro dessa conjuntura esse é um esforço que precisamos fazer.
Sul21 – Nos dias anteriores ao segundo turno das eleições, houve uma série de ataques a universidades e professores. Que medidas podem ser tomadas nesse tipo de situação, esse clima continua?
Antônio – A gente tem o entendimento de que o ataque à universidade é um ataque articulado pelas forças conservadoras que estão se expressando muito fortemente no último período. Que estavam meio no armário e agora se manifestaram e ascenderam ao poder com o apoio popular, algo que merece de nós uma reflexão muito grande. A universidade é estratégica para qualquer sociedade, porque contribui com a construção do pensamento crítico, de uma formação pretensamente emancipatória. Então ter o controle da universidade é sempre uma tentativa de diversos governos ao longo do tempo.
Fomos surpreendidos com a intrepidez dos ataques porque eles foram num período curto de tempo, em diversas universidades, algumas com mandados judiciais e outras não. Esse ambiente hostil já era visível na universidade, já existiam vários conflitos de forças antagônicas, mas achamos que foi um absurdo a invasão das universidades, a vigilância dos debates que estavam sendo feitos, antifascistas. E esse clima persiste, mesmo após o período eleitoral não houve um arrefecimento. Até porque a expectativa é de que os ataques se intensifiquem, tanto na frequência quanto na profundidade. O governo eleito não esconde que os serviços públicos e os servidores são o alvo a ser atacado. E no que tange à educação, o Temer já conseguiu ampliar para 30% o ensino a distância, já se fala em ensino a distância desde as séries iniciais. Vemos com muita preocupação, mas achamos que a universidade vai cumprir um papel muito relevante de resistência e até mesmo de avanço.
Sul21 – Outra questão que tem sido muito falada no momento político atual é do Escola sem Partido. Como está isso nas universidades, os professores estão preocupados?
Antônio – Algumas universidades têm mecanismos de controles internos para inibir assédio aos docentes. Obviamente que há uma leitura errada do cenário educacional brasileiro de achar que os professores são doutrinadores marxistas, e certamente não é esse o cenário. A gente tem uma base muito conservadora e as necessidades educacionais hoje não passam simplesmente pelo conteúdo. Temos problemas de método, de financiamento, estrutura, essas são as questões fundamentais. Mas ao se tentar desconstruir as universidades e o ensino como um todo, tentando reformulá-lo na perspectiva de uma ideologia conservadora, se utiliza da estratégia de dizer que os professores estão fazendo lavagem cerebral nos estudantes. Como se isso fosse possível! A gente tem uma juventude extremamente participativa, crítica, que debate com professor, coloca suas posições.

O esforço de todo educador tem que ser de possibilitar um ambiente que permita a construção do conhecimento visitando as diversas teorias. E é isso que se busca fazer. Mas se ao final desse processo a compreensão é de que temos uma sociedade injusta, que precisa ser efetivamente modificada, vemos isso como mais uma estratégia conservadora de ataque à educação, e temos feito diversas iniciativas de combate ao que chamamos de escola com mordaça. Agora nesse último período já foram cinco tentativas de votar na comissão especial o relatório, o que permitiria que fosse direto para o Senado, sem passar no plenário da Câmara.
Mas a partir dos ataques ocorridos no segundo turno, o Supremo Tribunal Federal teve uma posição muito importante em defesa da constitucionalidade da autonomia universitária. A gente entende que isso pode ser uma barreira para a concretização da Escola sem Partido, porque ele é inconstitucional. O que a educação precisa não é de mordaça, é de mais investimento, participação popular. Isso é um total desconhecimento das reais necessidades da educação pública brasileira. Isso vai ser uma luta muito grande, de disputar a consciência da classe trabalhadora, que acha que efetivamente os professores são doutrinadores.
Sul21 – Outra questão que o presidente eleito já abordou é a privatização da educação, assim como outros tipos de serviços públicos. O sindicato está preocupado, como estão vendo essa agenda?
Antônio – Historicamente, principalmente depois da crise do capitalismo da década de 70, isso levou o capital internacional a sinalizar para os países de capitalismo periférico – ou seja, nós – que o ensino superior tem que ser privado. Isso aparece em documentos do consenso de Washington por exemplo. Ao longo da década de 1990, o FHC fez um esforço enorme de privatizar o ensino superior. E em certa medida ele conseguiu, porque conseguiu ampliar em muito a oferta das privadas. Na proporção em que 71% dos egressos hoje vêm de instituições privadas e apenas 29% das públicas. Essa mesma proporção se manteve nos governos de frente popular, e ainda houve programas como o ProUni e Fies que transferiram recursos do fundo público para a iniciativa privada. Então essa tentativa já vem de longa data e nós achamos que ela vai se intensificar. O Michel Temer pediu para o Banco Mundial uma avaliação econômica, que se chama ‘Um ajuste justo’, e esse documento fala expressamente que o ensino superior deve ser privatizado. Se não se fizer uma privatização clássica, vai fazer por dentro, cobrando mensalidades, vendendo serviços. O Marco da Ciência e Tecnologia de 2015 já sinaliza para essas parcerias, induzindo os pesquisadores a buscar recursos na iniciativa privada.
Agora está se falando de cobrança de mensalidade para quem pode pagar, mas não se diz qual vai ser o critério. E seria muito mais justo se cobrasse no imposto de renda, com uma reforma tributária progressiva. Isso seria muito mais justo do que criar uma segregação na universidade entre quem paga e quem não paga a mensalidade. Porque mesmo do ponto de vista econômico não tem impacto algum cobrar mensalidade dentro do orçamento da universidade, é ínfimo. Mas tem um valor simbólico de dizer que esse espaço é privado, e que o Estado só vai garantir o ensino básico e o técnico voltado para o mundo do trabalho, então vai elitizar novamente a universidade. Passamos por um período de expansão, com políticas afirmativas que foram muito importantes e a gente queria aprofundar isso, mas certamente vamos viver um retrocesso. Claro que isso é o que se anuncia, mas toda política depende de uma correlação de forças. E a gente acha que o espaço do ensino superior vai ter muita disputa, muita resistência.

Sul21 – Nesse sentido, o sindicato teme que as cotas também estejam ameaçadas?
Antônio – As cotas são decorrentes de uma lei federal que pode sim ser revogada. Mas a universidade tem autonomia, mesmo antes da lei algumas universidades já estabeleciam as políticas afirmativas. A minha universidade mesmo também implantou antes da lei. Mas pode-se criar dificuldades, dentro da compreensão de que ‘somos todos iguais’, a gente vê isso no discurso, uma completa incompreensão de como é a formação da sociedade brasileira e das reparações que são necessárias de serem feitas enquanto a gente consegue ter uma sociedade mais justa. Mas falar de meritocracia na situação que a população negra se encontra em sua grande maioria é um absurdo.
Sul21 – Há ainda ameaças ao financiamento de pesquisas científicas por parte do governo eleito. Vocês consideram que essa retirada de recursos pode se concretizar?
Antônio – Entendemos que a educação pública tem que ser feita com financiamento público, o fundo público deve financiar a educação em diferentes níveis, inclusive a ciência e tecnologia. Porque se colocarmos os financiamentos nas mãos do mercado, só vão sobreviver as pesquisas que têm uma expectativa de gerar uma patente, um lucro. E são muitas as pesquisas do âmbito das ciências sociais e humanas que não vão resultar em algo que dê um lucro. Inclusive muitas delas chegam a conclusões que incomodam muito o mercado, então tendem a desaparecer ou ter mais dificuldade. Vão sobreviver as tecnológicas, da área da saúde, que, por exemplo, podem descobrir o principio ativo de uma droga que pode virar um medicamento.
Então é perverso fazer isso dentro de uma sociedade que requer pesquisa em diversos campos. Mas vários passos foram dados nesse sentido, o mais vigoroso foi o marco da ciência e tecnologia, ainda no governo Dilma. Foram várias mudanças legais, só na Constituição foram feitas nove emendas, para permitir as parcerias público-privadas no âmbito da ciência e tecnologia. Alguns pesquisadores gostaram de parte de importação, que foi facilitada. Mas o que tange o financiamento foi um processo de desresponsabilização estatal no financiamento da pesquisa pública. Aí fica empurrando o pesquisador para buscar na iniciativa privada esse apoio, o que também não veio ainda.
Sul21 – O senhor é professor de Medicina, queria fazer uma pergunta relacionada ao Mais Médicos. O senhor avalia que poderia haver alguma mudança na formação dos médicos brasileiros para que eles se interessassem mais em ir para áreas mais afastadas, aldeias indígenas, comunidades ribeirinhas?
Antônio – Eu sou um defensor incondicional do SUS, ele é fruto de um movimento que antecede a constituição de 1988, que é da reforma sanitária. Conseguimos a partir daí com muito custo colocar no texto constitucional a garantia da saúde como um direito, e não como um serviço. Isso é uma questão conceitual importante. E também de atendimento universal gratuito e de qualidade. Então para mim é um processo de construção desse sistema, que é muito jovem, mas ao mesmo tempo tivemos muitos avanços. Ao mesmo tempo em que o sistema de saúde avançava na perspectiva teórica de inclusão, de universalização, a formação dos profissionais de saúde não acompanhava esse processo. Isso não apenas na medicina, mas também na enfermagem, odontologia, diversas áreas da saúde.
Tanto que na década de 90, no caso específico da medicina se teve uma comissão nacional interinstitucional de avaliação das escolas médicas, um debate de quase uma década, e esse debate resultou nas diretrizes curriculares dos cursos de medicina de 2001. E daí naquela época já se tinha a percepção de que era necessário mudar o processo de formação dos profissionais da saúde. Em 2003, o Ministério da Saúde cria pela primeira vez uma secretaria para tratar especificamente da formação dos profissionais, e se começa a pensar em portarias interministeriais, da Saúde com Educação, coisa que não existia. Isso resultou num programa muito interessante, que foi o Pró-Saúde, que foi um programa de restruturação da formação de saúde no Brasil. Havia bastante recursos e as universidades que quisessem mudar os seus currículos poderiam concorrer em editais e receber os recursos para esse processo de mudança.

A ideia era mudar os conteúdos, para trabalhar mais conteúdos voltados para o SUS; mudar os cenários de práticas, para não ficar somente uma formação dentro de hospital, incluir a unidade básica de saúde; e a metodologia, não trabalhar só com exposição, mas com problematização, a partir das demandas da comunidade. Algumas escolas fizeram isso e foi um avanço. Se tivéssemos avançado mais, talvez pudesse ter se aproximado do processo de formação de Cuba, que conseguiu desmistificar a formação médica, que no Brasil ainda é muito elitista, isso é uma questão cultural. Mesmo quando se abriu muitas escolas médicas privadas, nunca se conseguiu ampliar o acesso. Em Cuba é completamente diferente, quando houve a Revolução não havia médicos, e eles tiveram um grande desafio ao longo de décadas e conseguiram formar médicos de comunidade, que trabalham na perspectiva de prevenção e não na perspectiva do atendimento que chamamos de terciário, que é quando a pessoa já está doente. É completamente anacrônico nosso processo de formação médica e nosso sistema de saúde. Isso precisa ser encarado.
E agora estamos diante de um rompimento de um acordo do governo brasileiro com o cubano, e o fato é que mais de oito mil médicos cubanos estão indo embora e milhões de brasileiros vão ficar sem assistência. Isso é algo muito grave. E se recorreu aos médicos estrangeiros porque os brasileiros não se inscreveram. Agora estão lançando novas editais e certamente muitas dessas oito mil vagas não serão preenchidas. Tem uma concentração ainda muito grande na região Sul e Sudeste de profissionais médicos e a gente precisa desses profissionais em áreas ermas. Teria que ter uma política de Estado para distribuir esses profissionais Brasil afora, não só deixar que esses critérios de mercado façam isso. Os profissionais se estabelecem onde tem melhores condições de trabalho e remuneração. Tem que ter um movimento do poder público de melhorar as condições de trabalho e a remuneração e implantar políticas, pode ser uma carreira de estado, pensar em alternativas para fixar o profissional em áreas que precisam.
Sul21 – Na sua avaliação, seria necessário também criar novos cursos ou mais vagas nas universidades?
Antônio – O Conselho Federal de Medicina diz que temos médicos em quantidade suficiente, mas eu discordo. Acho que não é só uma questão de má distribuição, mas ainda temos poucos médicos para a proporção que precisamos. Isso é uma disputa mercadológica, a lei do mercado é assim: quanto menor a oferta, maior o valor. Recentemente publicaram uma portaria proibindo a abertura de novas escolas médicas, mas o fato é que a gente precisa ampliar e distribuir. Mas só formar o profissional não é o suficiente, porque ele tende a ficar nos grandes centros. Tem que ter um sistema de saúde que dê condição para o profissional se fixar nos lugares mais distantes.